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SONO MORTO

Título: Sono Morto

Autor: Luís Ribeiro

Curadoria: Maria de Fátima Lambert e Pedro Silva

Ano: 2023

Local: Museu de Alberto Sampaio

Organização: Guimarães Project Room

Parceria: Museu de Alberto Sampaio

Textos: Maria de Fátima Lambert e Fernando José Pereira

SONO MORTO [PARA ACORDAR NA MANHÃ DOS DIAS PENSADOS…]

 

 

 

Au fond de notre cœur, tes yeux dépassent tous les ciels, leur cœur de nuit.

Flèches de joie, ils tuent le temps, ils tuent l’espoir et le regret, ils tuent l’absence

(Éluard, 1939, p.65].

 

Je devins esclave de la faculté pure de voir, esclave de mes yeux irréels et vierges, ignorants du monde et d’eux-mêmes [p.11].

 

Nuvens subcutâneas, respirações inquietas e pensamentos demorados: eis os termos que, quase em modo automático, resultam ao ver as obras de Luís Ribeiro – e que me inquietam. Obras que advêm da luta entre a escravidão de ver (mais do que olhar?) - deslizando no fio do tempo - e as volúpias iconográficas escritas na espessura mínima de existir ciente.

O sono sem nome de cada pessoa povoa-se de ironias entrecortadas por respirações preocupadas. No sono, a lassidão colore-se em lutas que nos inundam de suor e lágrimas; navega nas águas uterinas supostamente densas e turbulentas, alertadas por Bachelard. Impõe-se o primado do branco, adensado por nuances quase impossíveis de designar num pantone-ecrã que se elenque.

Branco, dos sonos-sonhos, perdura sem causa meteorológica, após dias nublados ou límpidos- pois a luz é intensamente branca e obriga a arrastar olhos para longe. A noite só é branca [na plenitude] quando Visconti, after Fédor Dostoiévski, assim o decidiu. Na noite, como no “sono morto”, sombras evidenciam mais e mais o branco. Melancoliza-se o olhar.

At first the world is a void (Śniedziewski, 2018, p.89).

O branco, eivado de cambiantes psicoafectivos, acende-se a disrupção poiética, entre a negação e a anuência, consoante as cronologias picturais e literárias.

Expande-se, o branco plural, lentamente: instaura a quietude cinemática que a mão do artista rompe sem tocar a pele da imagem; ou que traçou as linhas que configuram ideias acutilantes a empurrarem-nos nos dias brancos.

A gaze de um cortinado translúcido produz magia: organizam-se fantasmagorias antropomórficas. O tempo que perdura sob a intempérie simula as subversões impostas pela avidez contemporânea. Dizem.

Esse olhar, seguindo Maria José Mondzain, autora referencial para Luís Ribeiro, vagabundeia-se nas paisagens de medo e angústia: “que nos guia pelas desventuras humanas para revelar como se fez da melancolia uma alavanca para a superabundância da humanidade, confrontando-nos com uma força libertadora, e simultaneamente assustadora, das imagens” (2015, 8).

Paul Éluard (1939) dava-nos a ver, sublinhando-se o sentido de dar, como partilha, autorização, ato de proporcionar “ver”. Ato comunitário e reflexivo que o poeta francês coadunava com a missão esclarecedora, iluminada junto a outrem. Antecipou-se, pois na sua obra poética perpassa a indagação ontológica, eleita sobre a antropologia da imagem, décadas antes de Hans Belting (2001).

O poeta, afeto ao surrealismo francês, questionou os meandros do ato de ver numa indexação que mergulha em si (ideia introspetiva de si/imagem mental de si), anunciando para fruição estética e crítica a receção das obras por leitores, espetadores e afins. Não somente almejando a instantaneidade do ato de ver inócuo, também a perpetuidade subvertida de ver sem indagação.

A consciência urgente de “ver além de…/para lá do visível”, expressa-se em ver enquanto (trans)lúcido. É, pois, um axioma antigo, uma deliberação exigente da postura humanista que trespassa a razão de autores imemoriais; para atingir a condição, o entendimento intrínseco, a “presença real” (espontânea) do antigo que habita a memória pessoal, numa focagem que Sophia de Mello-Breyner (1976) ensinou a celebrar.

A mão, para além do olhar que pensa, é responsável. Sintetiza as emoções, a inconsciência que dirige os movimentos e inclina as palavras suspensas no ar – outro grande elemento. Os gestos pequenos, que a mão escreve, desenha, pinta ou aciona, guardam-se nos dedos, na palma e no pulso que conduz a mão: reverberam sons invisíveis. Ausculta-se a verdade na espessura da obra - no autor que nela se exaure.

 

Maria de Fátima Lambert

Gaston Bachelard (1942). L’Eau et les Rêves – essais sur l’imagination de la matière. (Version digitale) Québec : http ://classiques.uqac.ca/   

Filme de Luchino Visconti (1957). Noites Brancas. Disponível : https://www.youtube.com/watch?v=PKM4XE1S5ac

Piotr Śniedziewski (2018). The Melancholic Gaze. Berlin: Peter Lang.

Acerca do conceito de « branco », veja-se Michel Pastoureau (2022). Branco. Lisboa: Orfeu Negro.

Maria José Mondzain (2015). Homo Spectator – Ver > Fazer Ver, Lisboa: Orfeu Negro.

Curiosamente é célebre a fotografia de Paul Éluard que avança com a mão quase ocultando seu rosto. Uma paráfrase projetiva (involuntária) que evoca ao analisar o vídeo de Luís Ribeiro. Cf. Paul Éluard, (1978). Donner à Voir. Paris : Gallimard.

Hans Belting (2007). Antropologia de la Imagen. Beunos Aires : Katz Editores.

Sophia de Mello-Breyner Andresen (1967). Livro Sexto (Pósfacio). Lisboa: Moraes Ed., 1976, pp.75-77.

 

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Desenhos a carvão sintético, pastel seco (e spray acrílico nas letras) sobre papel, 150 x 120 cm cada, 2023

“Any gesticulation is read and understood in the language of ‘its possible disruption”
Vídeo FHD, cor, sem som, 03’:10’’, loop
2023

(esta é uma versão alterada, em loop, onde foi adicionada a peça sonora da exposição)

«Os ecrãs são apenas uma parte da opressão a que somos sujeitos. O vídeo “Any Gesticulation Is read And understood In the language of ‘its possible Disruption” é uma metáfora de desespero, de impossibilidade, de aprisionamento, da realidade da vida debaixo das condições impostas pelo neoliberalismo global. A figura que se aproxima e afasta, actua como uma “fera” no interior de uma jaula: em clima de agressividade crescente…e que, contudo, é, de algum modo, mais para o final, substituído por uma espécie de resignação: aquela tentativa de explicar, com a linguagem escrita, o que antes já tinha sido explicado com outro tipo de linguagem, é absolutamente frustrada. Nada se entende e nada consegue. Essa viragem, é para mim, uma das pérolas do vídeo. Como diria o Agamben, a potência da não potência. Parece-me bem que assim seja…sem respostas, sem sugestões moralistas, sem nada…que é como termina.
As zonas limítrofes, aquelas que delimitam o significado da fronteira e lhe introduzem a dupla interior/exterior são zonas de turbulência. Sempre. O que não quer dizer que sejam zonas de emancipação vitoriosa. Quase sempre não o são, seja no interior de uma máquina digital, seja na fronteira do México, seja junto ao muro que isola a Palestina…aquilo que é mais visível é, antes, o fracasso…infelizmente. O vídeo corporiza esse fracasso (talvez até como metáfora da própria condição da arte e dos artistas, como representação da sua não potência).»

Fernando José Pereira, 2023


*Título do vídeo apropriado de excerto da canção de Damien Dubrovnik do disco Vegas Fontain (2014).

Peça sonora:

 

Silêncio
16’:02’’
2023

Composição: Fernando José Pereira
Guitarra: Martijn Comes
Eletrónica: Fernando José Pereira
Texto: Luís Ribeiro
Voz: Luisilda Ribeiro
Gravação da voz: Whale’s Mouth

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